sábado, 19 de fevereiro de 2011

Para refletir com Francesco Tonucci


Aprendendo a brincar e brincando pra aprender



O papel do brincar


As fontes do conhecimento infantil são múltiplas, mas é no ato de brincar que a criança, de forma privilegiada, apropria-se da realidade imediata, atribuindo-lhe significado. As brincadeiras permitem
que a criança desenvolva imaginação, afetos, competências cognitivas e interativas, à medida que tem a oportunidade de vivenciar diferentes papéis.
Outra importante função da atividade lúdica é a elaboração de conflitos e ansiedades, e a criança demonstra ativamente, enquanto brinca, o que sofre passivamente. Brincando, as crianças constroem seu próprio mundo, resignificam e reelaboram os acontecimentos que deram origem a vivências e sentimentos.
A brincadeira, como eixo da proposta educativa, é um conceito bastante utilizado. Friedrich Froebel (Alemanha, 1782-1852), criador do jardim de infância, defendia o uso pedagógico de jogos e brinquedos organizados e sutilmente dirigidos pelo professor. Durante as décadas subseqüentes, vários educadores alertaram para a importância do lúdico na Educação.
Brincar favorece a auto-estima da criança e a interação com seus pares, propiciando situações de aprendizagem que desafiam suas capacidades cognitivas. Por meio do jogo simbólico, elas aprendem a agir, têm a curiosidade estimulada, adquirem iniciativa e exercitam sua autonomia. Os brinquedos são ferramentas e parceiros silenciosos que desafiam a criança, possibilitam descobertas e a compreensão de que o mundo está cheio de possibilidades e de oportunidades para a expansão da criatividade.
A criança deve brincar em todos os espaços da creche/pré-escola, inclusive na brinquedoteca, quando a instituição dispuser de uma. No entanto, é necessária sensibilidade por parte dos professores para acolherem suas iniciativas. Quando despreparados, tendem a interferir demais nas brincadeiras, dirigindo a atividade.

BRINQUEDOTECA
É um espaço preparado para estimular a exploração lúdica, onde a criança brinca livremente, descobre coisas novas, supera desafios, toma decisões, desenvolve e exercita suas capacidades – motoras, emocionais, cognitivas e interativas. Dispostos em cantos temáticos, os brinquedos estimulam a livre expressão da criança, permitindo a concretização do imaginário, o desenvolvimento da linguagem, a interação social e a estruturação da personalidade.
Segundo a Associação Brasileira de Brinquedotecas, as primeiras unidades implantadas no Brasil surgiram no início dos anos 1980.
Atualmente, a Associação reúne cerca de 400 brinquedotecas – a maioria em instituições e creches. Mas, para os especialistas, elas nem sempre cumprem sua finalidade pedagógica. Para tanto, é imprescindível que as crianças tenham acesso à sala dos brinquedos, disponham de tempo e liberdade para escolher com o que brincar.

LIVROS INFANTIS
O reconhecimento da literatura infantil como elemento formador da consciência cultural das sociedades é relativamente recente. Bem antes de aprender a ler, a criança observa e “sente” a história. Enquanto escuta o adulto lendo para ela, vai desenvolvendo um elo emocional com o leitor, com os personagens e o livro, desenvolvendo gosto pela leitura.
Entre 1 e 2 anos de idade, a criança observa mais a entonação e as mímicas faciais do contador de histórias do que propriamente seu conteúdo. As histórias devem ser contadas com vivacidade, ritmo e entonação. Precisam ser curtas, com apenas uma gravura em cada página. Os livros de pano ou plástico são adequados, pois há o impulso de pegar o livro e levá-lo à boca.
Para a faixa etária entre 3 e 6 anos, os livros devem ser muito ilustrados, com textos breves que podem ser lidos ou dramatizados pelos adultos para que as crianças percebam a inter-relação entre o mundo real que a cerca e o mundo da palavra. É a nomeação das coisas que proporciona o convívio inteligente, afetivo e profundo com a realidade circundante. Nessa idade, as crianças gostam de ouvir várias vezes a mesma história. É a fase do “conte outra vez”.

MATERIAIS PEDAGÓGICOS
São o conjunto de objetos e brinquedos que, junto com as condições do ambiente físico e os recursos humanos, constituem os componentes fundamentais para o desenvolvimento de uma Educação Infantil de qualidade.

Pra saber mais sobre nosso amigo Piaget

Jean Piaget (1896-1980) foi um renomado psicólogo e filósofo suíço, conhecido por seu trabalho pioneiro no campo da inteligência infantil. Piaget passou grande parte de sua carreira profissional interagindo com crianças e estudando seu processo de raciocínio. Seus estudos tiveram um grande impacto sobre os campos da Psicologia e Pedagogia.
Sua Vida
Jean Piaget nasceu no dia 9 de agosto de 1896, em Neuchâtel, na Suíça. Seu pai, um calvinista convicto, era professor universitário de Literatura medieval.
Piaget foi um menino prodígio. Interessou-se por História Natural ainda em sua infância. Aos 11 anos de idade, publicou seu primeiro trabalho sobre sua observação de um pardal albino. Esse breve estudo é considerado o início de sua brilhante carreira científica. Aos sábados, Piaget trabalhava gratuitamente no Museu de História Natural.
Piaget freqüentou a Universidade de Neuchâtel, onde estudou Biologia e Filosofia. Ele recebeu seu doutorado em Biologia em 1918, aos 22 anos de idade.
Após formar-se, Piaget foi para Zurich, onde trabalhou como psicólogo experimental. Lá ele freqüentou aulas lecionadas por Jung e trabalhou como psiquiatra em uma clínica. Essas experiências influenciaram-no em seu trabalho. Ele passou a combinar a psicologia experimental - que é um estudo formal e sistemático - com métodos informais de psicologia: entrevistas, conversas e análises de pacientes.

Em 1919, Piaget mudou-se para a França, onde foi convidado a trabalhar no laboratório de Alfred Binet, um famoso psicólogo infantil que desenvolveu testes de inteligência padronizados para crianças. Piaget notou que crianças francesas da mesma faixa etária cometiam erros semelhantes nesses testes e concluiu que o pensamento lógico se desenvolve gradualmente.
O ano de 1919 foi um marco em sua vida. Piaget iniciou seus estudos experimentais sobre a mente humana e começou a pesquisar também sobre o desenvolvimento das habilidades cognitivas. Seu conhecimento de Biologia levou-o a enxergar o desenvolvimento cognitivo de uma criança como sendo uma evolução gradativa.
Em 1921, Piaget voltou à Suíça e tornou-se diretor de estudos no Instituto J. J. Rousseau da Universidade de Genebra. Lá ele iniciou o maior trabalho de sua vida, ao observar crianças brincando e registrar meticulosamente as palavras, ações e processos de raciocínio delas.
Em 1923, Piaget casou-se com Valentine Châtenay, com quem teve três filhas: Jacqueline (1925), Lucienne (1927) e Laurent (1931). As teorias de Piaget foram, em grande parte, baseadas em estudos e observações de seus filhos que ele realizou ao lado de sua esposa.

Enquanto prosseguia com suas pesquisas e publicações de trabalhos, Piaget lecionou em diversas universidades européias. Registros revelam que ele foi o único suíço a ser convidado para lecionar na Universidade de Sorbonne (Paris, França), onde permaneceu de 1952 a 1963. Até a data de seu falecimento, Piaget fundou e dirigiu o Centro Internacional para Epistemologia Genética. Ao longo de sua brilhante carreira, Piaget escreveu mais de 75 livros e centenas de trabalhos científicos.
Piaget morreu em Genebra, em 17 de setembro de 1980.
Sua Obra

Piaget desenvolveu diversos campos de estudos científicos: a psicologia do desenvolvimento, a teoria cognitiva e o que veio a ser chamado de epistemologia genética.
A essência do trabalho de Piaget ensina que ao observarmos cuidadosamente a maneira com que o conhecimento se desenvolve nas crianças, podemos entender melhor a natureza do conhecimento humano. Suas pesquisas sobre a psicologia do desenvolvimento e a epistemologia genética tinham o objetivo de entender como o conhecimento evolui.
Piaget formulou sua teoria de que o conhecimento evolui progressivamente por meio de estruturas de raciocínio que substituem umas às outras através de estágios. Isto significa que a lógica e formas de pensar de uma criança são completamente diferentes da lógica dos adultos.
Em seu trabalho, Piaget identifica os quatro estágios de evolução mental de uma criança. Cada estágio é um período onde o pensamento e comportamento infantil é caracterizado por uma forma específica de conhecimento e raciocínio. Esses quatro estágios são: sensório-motor, pré-operatório, operatório concreto e operatório formal.
Fase 1: Sensório-motor
No estágio sensório-motor, que dura do nascimento ao 18º mês de vida, a criança busca adquirir controle motor e aprender sobre os objetos físicos que a rodeiam. Esse estágio se chama sensório-motor, pois o bebê adquire o conhecimento por meio de suas próprias ações que são controladas por informações sensoriais imediatas.
Fase 2: Pré-operatório
No estágio pré-operatório, que dura do 18º mês aos 8 anos de vida, a criança busca adquirir a habilidade verbal. Nesse estágio, ela já consegue nomear objetos e raciocinar intuitivamente, mas ainda não consegue coordenar operações fundamentais.
Fase 3: Operatório concreto
No estágio operatório concreto, que dura dos 8 aos 12 anos de vida, a criança começa a lidar com conceitos abstratos como os números e relacionamentos. Esse estágio é caracterizado por uma lógica interna consistente e pela habilidade de solucionar problemas concretos.
Fase 4: Operatório formal
No estágio operatório formal – desenvolvido entre os 12 e 15 anos de idade – a criança começa a raciocinar lógica e sistematicamente. Esse estágio é definido pela habilidade de engajar-se no raciocínio abstrato. As deduções lógicas podem ser feitas sem o apoio de objetos concretos.
No estágio das operações formais, desenvolvido a partir dos 12 anos de idade, a criança inicia sua transição para o modo adulto de pensar, sendo capaz de pensar sobre idéias abstratas.
Conclusão:
Em seus estudos sobre crianças, Jean Piaget descobriu que elas não raciocinam como os adultos. Esta descoberta levou Piaget a recomendar aos adultos que adotassem uma abordagem educacional diferente ao lidar com crianças. Ele modificou a teoria pedagógica tradicional que, até então, afirmava que a mente de uma criança é vazia, esperando ser preenchida por conhecimento. Na visão de Piaget, as crianças são as próprias construtoras ativas do conhecimento, constantemente criando e testando suas teorias sobre o mundo. Ele forneceu uma percepção sobre as crianças que serve como base de muitas linhas educacionais atuais. De fato, suas contribuições para as áreas da Psicologia e Pedagogia são imensuráveis.


ESTAGIOS DE DESENVOLVIMENTO SEGUNDO PIAGET

Segundo Piaget o desenvolvimento da criança ocorre por estágios, ocorrendo uma modificação progressiva dos esquemas de assimilação, propiciando diferentes maneiras do indivíduo interagir com o meio, ou seja, de organizar seus conhecimentos visando sua adaptação,
Os estágios evoluem como uma espiral, de modo que cada estágio engloba o anterior e o amplia. Piaget não define idades rígidas para os estágios, mas sim que estes se apresentam em uma seqüência constante.
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1. Estágio sensorio-motor,
De 0 a 2 anos (mais ou menos):
A atividade intelectual da criança é de natureza sensorial e motora.
A principal característica desse período é a ausência da função semiótica, isto é, a criança não representa mentalmente os objetos. Sua ação é direta sobre eles. Essas atividades serão o fundamento da atividade intelectual futura.
A estimulação ambiental deve ser principalmente de natureza sensorial (visão, audição, tato, paladar, olfato) e motora (movimentos com o corpo). Os estímulos do ambiente interferirá na passagem de um estágio para o outro.
A partir de reflexos neurológicos básicos, o bebê começa a construir esquemas de ação para assimilar mentalmente o meio. A inteligência é prática. As noções de espaço e tempo são construídas pela ação. O contato com o meio é direto e imediato, sem representação ou pensamento.
Exemplos:
O bebê pega o que está em sua mão; "mama" o que é posto em sua boca; "vê" o que está diante de si. Aprimorando esses esquemas, é capaz de ver um objeto, pegá-lo e levá-lo a boca.

2. Estágio pré-operacional,
De 2 a 6 anos (aproximadamente):
Algumas obras engloba o estágio pré-operacional como um subestágio do estágio de operações concretas. A criança desenvolve a capacidade simbólica; "já não depende unicamente de suas sensações, de seus movimentos, mas já distingue um significador(imagem, palavra ou símbolo) daquilo que ele significa(o objeto ausente), o significado". Para a educação é importante ressaltar o caráter lúdico do pensamento simbólico.
Este período caracteriza-se: pelo egocentrismo: isto é, a criança ainda não se mostra capaz de colocar-se na perspectiva do outro, o pensamento pré-operacional é estático e rígido, a criança capta estados momentâneos, sem juntá-los em um todo; pelo desequilíbrio: há uma predominância de acomodações e não das assimilações; pela irreversibilidade: a criança parece incapaz de compreender a existência de fenômenos reversíveis, isto é, que se fizermos certas transformações, somos capazes de restaurá-las, fazendo voltar ao estágio original, como por exemplo, a água que se transforma em gelo e aquecendo-se volta à forma original.

Também chamado de estágio da Inteligência Simbólica . Caracteriza-se, principalmente, pela interiorização de esquemas de ação construídos no estágio anterior (sensório-motor).
A criança deste estágio:
• É egocêntrica, centrada em si mesma, e não consegue se colocar, abstratamente, no lugar do outro.
• Não aceita a idéia do acaso e tudo deve ter uma explicação (é fase dos "por quês").
• Já pode agir por simulação, "como se".
• Possui percepção global sem discriminar detalhes.
• Deixa se levar pela aparência sem relacionar fatos.
Exemplos:
Mostram-se para a criança, duas bolinhas de massa iguais e dá-se a uma delas a forma de salsicha. A criança nega que a quantidade de massa continue igual, pois as formas são diferentes. Não relaciona as situações.

3. Estágio das operações concretas,
Dos 7 aos 12 anos (aproximadamente): a criança já possui uma organização mental integrada, os sistemas de ação reúnem-se em todos integrados. Piaget fala em operações de pensamento ao invés de ações. É capaz de ver a totalidade de diferentes ângulos. Conclui e consolida as conservações do número, da substância e do peso. Apesar de ainda trabalhar com objetos, (material concreto) agora representados, sua flexibilidade de pensamento permite um sem número de aprendizagens.
A criança desenvolve noções de tempo, espaço, velocidade, ordem, casualidade, ..., já sendo capaz de relacionar diferentes aspectos e abstrair dados da realidade. Não se limita a uma representação imediata, mas ainda depende do mundo concreto para chegar à abstração.
desenvolve a capacidade de representar uma ação no sentido inverso de uma anterior, anulando a transformação observada (reversibilidade).
Exemplos:
despeja-se a água de dois copos em outros, de formatos diferentes, para que a criança diga se as quantidades continuam iguais. A resposta é afirmativa uma vez que a criança já diferencia aspectos e é capaz de "refazer" a ação.


4. Estágio das operações formais,
Dos 13 anos em diante: ocorre o desenvolvimento das operações de raciocínio abstrato. A criança se liberta inteiramente do objeto concreto, inclusive o representado, operando agora com a forma (em contraposição a conteúdo), situando o real em um conjunto de transformações. A grande novidade do nível das operações formais é que o sujeito torna-se capaz de raciocinar corretamente sobre proposições em que não acredita, ou que ainda não acredita, que ainda considera puras hipóteses. É capaz de inferir as conseqüências. Tem início os processos de pensamento hipotético-dedutivos.
A representação agora permite a abstração total. A criança não se limita mais a representação imediata nem somente às relações previamente existentes, mas é capaz de pensar em todas as relações possíveis logicamente buscando soluções a partir de hipóteses e não apenas pela observação da realidade.
Em outras palavras, as estruturas cognitivas da criança alcançam seu nível mais elevado de desenvolvimento e tornam-se aptas a aplicar o raciocínio lógico a todoas as classes de problemas.
Exemplos:
Se lhe pedem para analisar um provérbio como "de grão em grão, a galinha enche o papo", a criança trabalha com a lógica da idéia (metáfora) e não com a imagem de uma galinha comendo grãos.

Letrar é mais que alfabetizar

Entrevista com Magda Becker Soares.

Nos dias de hoje, em que as sociedades do mundo inteiro estão cada vez mais centradas na escrita, ser alfabetizado, isto é, saber ler eescrever, tem se revelado condição insuficiente para responder adequadamente às demandas contemporâneas. É preciso ir além da simples aquisição do código escrito, é preciso fazer uso da leitura e da escrita no cotidiano, apropriar-se da função social dessas duas práticas; é preciso letrar-se. O conceito de letramento, embora ainda não registrado nos dicionários brasileiros, tem seu aflorar devido à insuficiência reconhecida do conceito de alfabetização. E, ainda que não mencionado, já está presente na escola, traduzido em ações pedagógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar, como constata a professora Magda Becker Soares, que, há anos, vem se debruçando sobre esse conceito e sua prática.
"A cada momento, multiplicam-se as demandas por práticas de leitura e de escrita, não só na chamada cultura do papel, mas também na nova cultura da tela, com os meios eletrônicos", diz Magda, professora emérita da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Se uma criança sabe ler, mas não é capaz de ler um livro, uma revista, um jornal, se sabe escrever palavras e frases, mas não é capaz de escrever uma carta, é alfabetizada, mas não é letrada", explica. Para ela, em sociedades grafocêntricas como a nossa, tanto crianças de camadas favorecidas quanto crianças das camadas populares convivem com a escrita e com práticas de leitura e escrita cotidianamente, ou seja, vivem em ambientes de letramento.
"A diferença é que crianças das camadas favorecidas têm um convívio inegavelmente mais freqüente e mais intenso com material escrito e com práticas de leitura e de escrita", diz. "É prioritário propiciar igualmente a todos o acesso ao letramento, um processo de toda a vida".
(ELIANE BARDANACHVILI)
- O que levou os pesquisadores ao conceito de "letramento", em lugar do de alfabetização?
- A palavra letramento e, portanto, o conceito que ela nomeia entraram recentemente no nosso vocabulário. Basta dizer que, embora apareça com freqüência na bibliografia acadêmica, a palavra não está ainda nos dicionários. Há, mesmo, vários livros que trazem essa palavra no título. Mas ela não foi ainda incluída, por exemplo, no recente Michaelis, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa , de 1998, nem na nova edição do Aurélio, o Aurélio Século XXI , publicado em 1999. É preciso reconhecer também que a palavra não foi incorporada pela mídia ou mesmo pelas escolas e professores. É ainda uma palavra quase só dos "pesquisadores", como bem diz a pergunta. O mesmo não acontece com o conceito que a palavra nomeia, porque ele surge como conseqüência do reconhecimento de que o conceito de alfabetização tornou-se insatisfatório.
- Por quê?
- A preocupação com um analfabetismo funcional [terminologia que a Unesco recomendara nos anos 70, e que o Brasil passou usar somente a partir de 1990, segundo a qual a pessoa apenas sabe ler e escrever, sem saber fazer uso da leitura e da escrita], ou com o iletrismo, que seria o contrário de letramento, é um fenômeno contemporâneo, presente até no Primeiro Mundo.
- E como isso ocorre?
- É que as sociedades, no mundo inteiro, tornaram-se cada vez mais centradas na escrita. A cada momento, multiplicam-se as demandas por práticas de leitura e de escrita, não só na chamada cultura do papel, mas também na nova cultura da tela, com os meios eletrônicos, que, ao contrário do que se costuma pensar, utilizam-se fundamentalmente da escrita, são novos suportes da escrita. Assim, nas sociedades letradas, ser alfabetizado é insuficiente para vivenciar plenamente a cultura escrita e responder às demandas de hoje.
- Qual tem sido a reação a esse fenômeno lá fora?
- Nos Estados Unidos e na Inglaterra, há grande preocupação com o que consideram um baixo nível de literacy da população, e, periodicamente, realizam-se testes nacionais para avaliar as habilidades de leitura e de escrita da população adulta e orientar políticas de superação do problema. Outro exemplo é a França. Os franceses diferenciam illettrisme muito claramente illettrisme de analphabétisme . Este último é considerado problema já vencido, com exceção para imigrantes analfabetos em língua francesa. Já illettrisme surge como problema recente da população francesa. Basta dizer que a palavra illettrisme só entrou no dicionário, na França, nos anos 80. Em Portugal é recente a preocupação com a questão do letramento, que lá ganhou a denominação de literacia, numa tradução mais ao pé da letra do inglês literacy .
- O que explica o aparecimento do conceito de letramento entre nós?
- Não se trata propriamente do aparecimento de um novo conceito, mas do reconhecimento de um fenômeno que, por não ter, até então, significado social, permanecia submerso. Desde os tempos do Brasil Colônia, e até muito recentemente, o problema que enfrentávamos em relação à cultura escrita era o analfabetismo, o grande número de pessoas que não sabiam ler e escrever. Assim, a palavra de ordem era alfabetizar. Esse problema foi, nas últimas décadas, relativamente superado, vencido de forma pelo menos razoável. Mas a preocupação com o letramento passou a ter grande presença na escola, ainda que sem o reconhecimento e o uso da palavra, traduzido em ações pedagógicas de reorganização do ensino e reformulação dos modos de ensinar.
- Como o conceito de letramento, mesmo sem que se utilize este termo, vem sendo levado à prática?
- No início dos anos 90, começaram a surgir os ciclos básicos de alfabetização, em vários estados; mais recentemente, a própria lei [Lei de Diretrizes e Bases, de 1996] criou os ciclos na organização do ensino. Isso significa que, pelo menos no que se refere ao ciclo inicial, o sistema de ensino e as escolas passam a reconhecer que alfabetização, entendida apenas como a aprendizagem da mecânica do ler e do escrever e que se pretendia que fosse feito em um ano de escolaridade, nas chamadas classes de alfabetização, é insuficiente. Além de aprender a ler e a escrever, a criança deve ser levada ao domínio das práticas sociais de leitura e de escrita. Também os procedimentos didáticos de alfabetização acompanham essa nova concepção: os antigos métodos e as antigas cartilhas, baseados no ensino de uma mecânica transposição da forma sonora da fala à forma gráfica da escrita, são substituídos por procedimentos que levam as crianças a conviver, experimentar e dominar as práticas de leitura e de escrita que circulam na nossa sociedade tão centrada na escrita.
- Como se poderia, então, definir letramento?
- Letramento é, de certa forma, o contrário de analfabetismo. Aliás, houve um momento em que as palavras letramento e alfabetismo se alternavam, para nomear o mesmo conceito. Ainda hoje há quem prefira a palavra alfabetismo à palavra letramento - eu mesma acho alfabetismo uma palavra mais vernácula que letramento, que é uma tentativa de tradução da palavra inglesa literacy , mas curvo-me ao poder das tendências lingüísticas, que estão dando preferência a letramento. Analfabetismo é definido como o estado de quem não sabe ler e escrever; seu contrário, alfabetismo ou letramento, é o estado de quem sabe ler e escrever. Ou seja: letramento é o estado em que vive o indivíduo que não só sabe ler e escrever, mas exerce as práticas sociais de leitura e escrita que circulam na sociedade em que vive: sabe ler e lê jornais, revistas, livros; sabe ler e interpretar tabelas, quadros, formulários, sua carteira de trabalho, suas contas de água, luz, telefone; sabe escrever e escreve cartas, bilhetes, telegramas sem dificuldade, sabe preencher um formulário, sabe redigir um ofício, um requerimento. São exemplos das práticas mais comuns e cotidianas de leitura e escrita; muitas outras poderiam ser citadas.
- Ler e escrever puramente tem algum valor, afinal?
- Alfabetização e letramento se somam. Ou melhor, a alfabetização é um componente do letramento. Considero que é um risco o que se vinha fazendo, ou se vem fazendo, repetindo-se que alfabetização não é apenas ensinar a ler e a escrever, desmerecendo assim, de certa forma, a importância de ensinar a ler e a escrever. É verdade que esta é uma maneira de reconhecer que não basta saber ler e escrever, mas, ao mesmo tempo, pode levar também a perder-se a especificidade do processo de aprender a ler e a escrever, entendido como aquisição do sistema de codificação de fonemas e decodificação de grafemas, apropriação do sistema alfabético e ortográfico da língua, aquisição que é necessária, mais que isso, é imprescindível para a entrada no mundo da escrita. Um processo complexo, difícil de ensinar e difícil de aprender, por isso é importante que seja considerado em sua especificidade. Mas isso não quer dizer que os dois processos, alfabetização e letramento, sejam processos distintos; na verdade, não se distinguem, deve-se alfabetizar letrando .
- De que forma?
- Se alfabetizar significa orientar a criança para o domínio da tecnologia da escrita, letrar significa levá-la ao exercício das práticas sociais de leitura e de escrita. Uma criança alfabetizada é uma criança que sabe ler e escrever; uma criança letrada (tomando este adjetivo no campo semântico de letramento e de letrar, e não com o sentido que tem tradicionalmente na língua, este dicionarizado) é uma criança que tem o hábito, as habilidades e até mesmo o prazer de leitura e de escrita de diferentes gêneros de textos, em diferentes suportes ou portadores, em diferentes contextos e circunstâncias. Se a criança não sabe ler, mas pede que leiam histórias para ela, ou finge estar lendo um livro, se não sabe escrever, mas faz rabiscos dizendo que aquilo é uma carta que escreveu para alguém, é letrada, embora analfabeta, porque conhece e tenta exercer, no limite de suas possibilidades, práticas de leitura e de escrita. Alfabetizar letrando significa orientar a criança para que aprenda a ler e a escrever levando-a a conviver com práticas reais de leitura e de escrita: substituindo as tradicionais e artificiais cartilhas por livros, por revistas, por jornais, enfim, pelo material de leitura que circula na escola e na sociedade, e criando situações que tornem necessárias e significativas práticas de produção de textos.
- O processo de letramento ocorre, então, mesmo entre crianças bem pequenas...
- Pode-se dizer que o processo começa bem antes de seu processo de alfabetização: a criança começa a "letrar-se" a partir do momento em que nasce numa sociedade letrada. Rodeada de material escrito e de pessoas que usam a leitura e a escrita - e isto tanto vale para a criança das camadas favorecidas como para a das camadas populares, pois a escrita está presente no contexto de ambas -, as crianças, desde cedo, vão conhecendo e reconhecendo práticas de leitura e de escrita. Nesse processo, vão também conhecendo e reconhecendo o sistema de escrita, diferenciando-o de outros sistemas gráficos (de sistemas icônicos, por exemplo), descobrindo o sistema alfabético, o sistema ortográfico. Quando chega à escola, cabe à educação formal orientar metodicamente esses processos, e, nesse sentido, a Educação Infantil é apenas o momento inicial dessa orientação.
- O processo de letramento ocorre durante toda a vida escolar?
- A alfabetização, no sentido que atribuí a essa palavra, é que se concentra nos primeiros anos de escolaridade. Concentra-se aí, mas não ocorre só aí: por toda a vida escolar os alunos estão avançando em seu domínio do sistema ortográfico. Aliás, um adulto escolarizado, quando vai ao dicionário, resolver dúvida sobre a escrita de uma palavra está retomando seu processo de alfabetização. Mas esses procedimentos de alfabetização tardia são esporádicos e eventuais, ao contrário do letramento, que é um processo que se estende por todos os anos de escolaridade e, mais que isso, por toda a vida. Eu diria mesmo que o processo de escolarização é, fundamentalmente, um processo de letramento.
- Em qualquer disciplina?
- Em todas as áreas de conhecimento, em todas as disciplinas, os alunos aprendem através de práticas de leitura e de escrita: em História, em Geografia, em Ciências, mesmo na Matemática, enfim, em todas as disciplinas, os alunos aprendem lendo e escrevendo. É um engano pensar que o processo de letramento é um problema apenas do professor de Português: letrar é função e obrigação de todos os professores. Mesmo porque em cada área de conhecimento a escrita tem peculiaridades, que os professores que nela atuam é que conhecem e dominam. A quantidade de informações, conceitos, princípios, em cada área de conhecimento, no mundo atual, e a velocidade com que essas informações, conceitos, princípios são ampliados, reformulados, substituídos, faz com que o estudo e a aprendizagem devam ser, fundamentalmente, a identificação de ferramentas de busca de informação e de habilidades de usá-las, através de leitura, interpretação, relacionamento de conhecimentos. E isso é letramento, atribuição, portanto, de todos os professores, de toda a escola.
- Mas seria maior a responsabilidade do professor de Português?
- É claro que o professor de Português tem uma responsabilidade bem mais específica com relação ao letramento: enquanto este é um "instrumento" de aprendizagem para os professores das outras áreas, para o professor de Português ele é o próprio objeto de aprendizagem, o conteúdo mesmo de seu ensino.
- Muitos pais reclamam do fato de, hoje, os grandes textos de literatura, nos livros didáticos, darem lugar a letras de música, rótulos de produtos, bulas de remédio. O que essa ênfase nos textos do dia-a-dia tem de positivo e o que teria de negativo?
- É verdade que o conceito de letramento, bem como a nova concepção de alfabetização que decorre dele e também das teorias do construtivismo que chegaram ao campo da educação e do ensino nos anos 80, trouxeram um certo exagero na utilização de diferentes gêneros e diferentes portadores de texto na sala de aula. É realmente lamentável que os textos literários, até pouco tempo atrás exclusivos nas aulas de Português, tenham perdido espaço. É preciso não esquecer que, exatamente porque a literatura tem, lamentavelmente, no contexto brasileiro, pouca presença na vida cotidiana dos alunos, cabe à escola dar a eles a oportunidade de conhecê-la e dela usufruir. Por outro lado, tem talvez faltado critério na seleção dos gêneros. Por exemplo: parece-me equivocado o trabalho com letras de música, que perdem grande parte de seu significado e valor se desvinculadas da melodia: é difícil apreciar plenamente uma canção de Chico Buarque ou de Caetano Veloso lendo a letra da canção como se fosse um poema, desligada ela da música que é quem lhe dá o verdadeiro sentido e a plena expressividade. Parece óbvio que devem ser priorizados, para as atividades de leitura, os gêneros que mais freqüentemente ou mais necessariamente são lidos, nas práticas sociais, e, para as atividades de produção de texto, os gêneros mais freqüentes ou mais necessários nas práticas sociais de escrita. Estes não coincidem inteiramente com aqueles, já que há gêneros que as pessoas lêem, mas nunca ou raramente escrevem, e há gêneros que as pessoas não só lêem, mas também escrevem. Por exemplo: rótulos de produtos são textos que devemos aprender a ler, mas certamente não precisaremos aprender a escrever. Assim, a adoção de critérios bem fundamentados para selecionar quais gêneros devem ser trabalhados em sala de aula, para a leitura e para a produção de textos, afastará os aspectos negativos que uma invasão excessiva e indiscriminada de gêneros e portadores sem dúvida tem.
- A condução do processo de letramento difere, no caso de se lidar com uma criança de classe mais favorecida ou com uma de classe popular?
- Em sociedades grafocêntricas como a nossa, tanto crianças de camadas favorecidas quanto crianças das camadas populares convivem com a escrita e com práticas de leitura e escrita cotidianamente, ou seja, umas e outras vivem em ambientes de letramento. A diferença é que crianças das camadas favorecidas têm um convívio inegavelmente mais freqüente e mais intenso com material escrito e com práticas de leitura e de escrita do que as crianças das camadas populares, e, o que é mais importante, essas crianças, porque inseridas na cultura dominante, convivem com o material escrito e as práticas que a escola valoriza, usa e quer ver utilizados. Dois aspectos precisam, então, ser considerados: de um lado, a escola deve aprender a valorizar também o material escrito e as práticas de leitura e de escrita com que as crianças das camadas populares convivem; de outro lado, a escola deve dar oportunidade a essas crianças de ter acesso ao material escrito e às práticas da cultura dominante. Da mesma forma, a escola que serve às camadas dominantes deve dar oportunidade às crianças dessas camadas de conhecer e usufruir da cultura popular, tendo acesso ao material escrito e às práticas dessa cultura.
- Como deve ser a preparação do professor para que ele "letre"? Em que esse preparo difere daquele que o professor recebe hoje?
- Entendendo a função do professor, de qualquer nível de escolaridade, da Educação Infantil à educação pós-graduada, como uma função de letramento dos alunos em sua área específica, o professor precisa, em primeiro lugar, ser ele mesmo letrado na sua área de conhecimento: precisa dominar a produção escrita de sua área, as ferramentas de busca de informação em sua área, e ser um bom leitor e um bom produtor de textos na sua área. Isso se refere mais particularmente à formação que o professor deve ter no conteúdo da área de conhecimento que elegeu. Mas é preciso, para completar uma formação que o torne capaz de letrar seus alunos, que conheça o processo de letramento, que reconheça as características e peculiaridades dos gêneros de escrita próprios de sua área de conhecimento. Penso que os cursos de formação de professores, em qualquer área de conhecimento, deveriam centrar seus esforços na formação de bons leitores e bons produtores de texto naquela área, e na formação de indivíduos capazes de formar bons leitores e bons produtores de textos naquela área.